Desafios e oportunidades da gestão no Brasil

16/09/2024
Temas como PNRS, cobrança de tarifa pela coleta e destinação de resíduos, e gestão integrada dos resíduos, dentre outros, são tratados em entrevista com Fabricio Soler

A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) é um marco importante para o Brasil no que tange à gestão sustentável dos resíduos. Com o objetivo de promover a responsabilidade compartilhada entre governo, empresas e sociedade, essa política é fundamental para o avanço da economia circular e para a implementação eficaz da logística reversa. Nesta entrevista exclusiva à Saneamento Ambiental, Fabricio Soler, renomado especialista em Direitos de Resíduos, discute as nuances da PNRS, sua interseção com a economia circular, a importância da logística reversa e como a gestão de resíduos está intrinsecamente ligada às questões de saneamento e meio ambiente no Brasil.

Na entrevista, Fabricio Soler ressalta a importância de uma abordagem integrada para a gestão de resíduos no Brasil, onde a Política Nacional de Resíduos Sólidos se destaca como um pilar essencial. Fabrício Solar é professor, advogado especialista em direitos de resíduos, consultor jurídico, diretor de saneamento na FIESP, coordenador de saneamento da OAB, conselheiro ESG e conselheiro do pacto global da ONU.

 

SA - Quais são as principais lacunas na legislação brasileira relacionada à gestão de resíduos e saneamento ambiental?

FABRÍCIO SOLER - Olhando primeiro para resíduos, entendo que há lacuna na fiscalização, lembrando que  a política nacional de meio ambiente de 1981 já previa o combate à poluição, neste caso causada há décadas por milhares de  lixões ainda em funcionamento no país. Temos a Constituição Federal de 1988, que assegura um ambiente ecologicamente equilibrado como um direito da população, direito esse que não é exercido com a operação desses milhares de vazadouros. Em 1998, foi publicada  a lei de crimes ambientais, que criminaliza a atividade  de lixões, ou seja, é crime ambiental dispor rejeitos e  resíduos nesses locais. Em 2008, tivemos o  decreto de infrações ambientais que prevê multa de até 50 milhões de reais no caso de disposição inadequada em  lixões. Finalmente, temos em 2010 a Política Nacional de Resíduos Sólidos, que traz vários instrumentos, metas e diretrizes. Dentre essas metas está que, em 4 anos, o País encaminharia para aterros sanitários apenas rejeitos. Ou seja, pressupondo que não existisse mais lixão. No entanto, em 2014 esse prazo não foi atendido. Nós tivemos depois, em 2020, o novo Marco do Saneamento, que estendeu o prazo até 2024 e o dado mais atualizado que nós temos é que, no Brasil, dos 5.570 municípios, aproximadamente 2.200 ainda encaminham tudo o que é gerado nos seus territórios para lixões. Precisamos superar e contornar essa lacuna da PNRS, em particular da ausência de fiscalização e penalização dos poluidores e gestores.

Além disso, só para fechar, nós temos a própria lei de improbidade administrativa. Porque uma vez que se está deixando de cumprir o normativo legal, de disposição final ambientalmente adequada, pode-se ter enquadramento na improbidade administrativa. Precisa uma atuação coordenada entre órgãos ambientais, fiscalização, ministério público e o controle e a penalização. E nós temos, também, a importante atuação dos Tribunais de Contas. Somente uma atuação coordenada de órgãos ambientais estaduais, ministérios públicos e tribunais de contas poderá permitir o cumprimento de todas essas normas que mencionamos e chegar, de fato, ao melhor cenário, eliminando definitivamente  os lixões. Porque há uma dificuldade de se falar, inclusive, em economia circular com todo esse cenário de lixões. Não se trata de uma realidade do território europeu, tampouco do americano, mas  uma particularidade aqui no Brasil que precisa ser enfrentada e resolvida.

Falei muito da lacuna da fiscalização, que conversa com um desafio de implementação do novo Marco do Saneamento. Em particular, o que se prevê é que os serviços deverão assegurar a sustentabilidade econômico-financeira. O serviço de saneamento tem um custo. Vou pegar aqui o caso do resíduo: tem a coleta, transporte, separação, tratamento, reciclagem e disposição final dos resíduos sólidos urbanos. Esse custo é de quem usa o serviço, o usuário, o cidadão. Para isso, o município – ou o concessionário, no caso privado – tem que cobrar a taxa ou tarifa dos resíduos, a  exemplo do que acontece para água e esgoto. Porém, os dados mais atualizados apontam que, dos 5.570 municípios, aproximadamente 1.800 cobram. Só que apenas 200 têm sustentabilidade econômico-financeira, cobrando o suficiente para fazer frente à despesa. Essa é a lógica do serviço público, a exemplo do que acontece com iluminação, água, esgoto, telefonia, serviço de dados, todos serviços públicos ao usuário. No entanto, existe o desafio de institucionalizar a cobrança obrigatória pelo Novo Marco Legal do Saneamento, combinado com a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Não precisa todo município ter um aterro sanitário, tem que estimular um olhar regionalizado, talvez um aterro privado atender uma dezena de municípios, assegurando o efetivo cumprimento da PNRS com a disposição final ambientalmente adequada.

 

SA – Um aterro regional atendendo 4 ou 6 municípios, não dificultaria a logística e a ajuda aos catadores regionais?

FABRÍCIO SOLER – Ótimo ponto. Se tem um aterro regional para fazer a disposição final, então é para o rejeito regional. Com um aterro privado, isso não interfere na gestão local do município, por exemplo, para fazer a coleta seletiva, realizar a contratação de organizações de catadores de materiais recicláveis para coleta seletiva e para sensibilização dos consumidores, usuários, com estação de transferência e reciclagem para reduzir o volume do aterro – isso está na mão do município. Primeiro, essa questão do aterro privado é para resolver o problema, na minha opinião, que é urgente, o de fechar o lixão imediatamente. Segundo: fechando o lixão, se pressupõe a disposição ambientalmente adequada em aterro sanitário. Terceiro: é preciso remediar as áreas dos lixões, que são grandes passivos ambientais. Olhando para uma visão de política pública, sou a favor do pragmatismo. Se dá para fazer uma modelagem de concessão a longo prazo, vamos priorizar. Se não dá, vamos fazer o que é possível: aterros regionais privados e de forma imediata!

 

SA: Na sua visão, a PNRS foi um marco importante para a gestão de resíduos no Brasil? Quais os principais avanços e desafios na sua implementação?

FABRÍCIO SOLER – Foi um marco, não apenas no resíduo, mas para a gestão ambiental no País, porque se trata de uma lei federal, que  respeita todas as particularidades do País e traz uma visão sistêmica que – isso importa – considerando variáveis ambientais, sociais, econômicas, financeiras, culturais, tecnológicas e educacionais. Qualquer região do Brasil tem a sua particularidade e a política nacional respeita isso. Ela traz instrumentos primorosos, como os planos estaduais e municipais de gestão integrada, os de gerenciamento de resíduos sólidos e os sistemas de logística reversa. Hoje, o País  tem sistemas regulados de coleta e destinação (logística reversa) para lâmpadas, pilhas e baterias, eletroeletrônicos, embalagens de vidro, pneus, embalagens de agroquímicos, óleos lubrificantes,  medicamentos de uso humano e certificados de  créditos de reciclagem. Então, isso demonstra a contemporaneidade da norma. E o desafio central, na minha opinião, são dois: primeiro, a eliminação definitiva dos lixões, o que ainda não é uma realidade do País. É não conviver com mais de 1/3 dos municípios com lixões. Segundo, a agenda de resíduos deve permitir uma transição justa, inclusiva, de valorização dos empregos dessa atividade, com ambiente digno de trabalho e em todo território nacional, assegurando o envolvimento das organizações de catadores de materiais recicláveis na implementação dessa política pública.

 

SA: Você comentou sobre a cobrança da taxa de lixo e comparou com a taxa da água e luz. Para os bairros mais carentes não seria uma dificuldade a mais pagar essa taxa?

FABRÍCIO SOLER – Adote-se a cobrança social ou a tarifa social. As políticas públicas sociais que existem para a taxa do esgoto também se aplicariam para o resíduo. Entendo que regiões e bairros mais nobres e desenvolvidos, com capacidade financeira melhor, arcariam com  taxa proporcional, enquanto aqueles que não têm condição pagariam uma tarifa menor. É apenas para estimular a adesão do consumidor, do usuário e do gerador. Na cidade de São Paulo se tem o município atuando no combate à disposição no que eles chamam de pontos viciados, que são locais com pequenos resíduos de construção. O sujeito vai lá e joga no vizinho, ou embaixo de uma ponte. Por isso, eu sempre trago esse olhar do gerador.

 

SA: Quais as principais tecnologias e inovações que podem revolucionar a gestão de resíduos e o saneamento básico nos próximos anos?

FABRÍCIO SOLER – A valorização do esgoto é uma das principais inovações, com aplicação na agricultura, geração de energia e aproveitamento para outras frentes. Atualmente, uma grande parte desse material está sendo destinada a aterros sanitários, o que compromete a vida útil do aterro com resíduos que poderiam ser tratados e valorizados. Uma solução promissora são as Unidades de Tratamento Mecânico (UTM), que permitem a  separação dos resíduos em fração seca (recicláveis) e fração orgânica, facilitando o aproveitamento de materiais. Outra ideia são os Eco Parques, que vão além dos aterros tradicionais, ao incorporar unidades de tratamento recicláveis e valorização dos resíduos orgânicos, além de gerar energia a partir desses materiais.. São infraestruturas que valorizam todo aquele material que chega, tratando de fato o resíduo como recurso. Acredito nisso, em termos tecnológicos e consagro a metodologia.

 

SA: Quais são os principais desafios legais que impedem a expansão da geração de energia a partir de resíduos sólidos no Brasil?

FABRÍCIO SOLER – A geração de energia a partir de aterros sanitários é uma tecnologia viável e já consagrada, onde o aproveitamento energético do próprio aterro é cada vez mais comum. No Brasil, temos a vantagem de contar com uma matriz energética predominantemente limpa, com parques eólicos, solares e hidrelétricos de destaque. Porém, para que a energia gerada a partir do lixo entre de forma competitiva nesse cenário, ainda enfrentamos desafios consideráveis.

O principal obstáculo é a viabilidade econômica. Embora a tecnologia exista e funcione, o custo inicial para implementar uma operação de geração de energia a partir de resíduos ainda é elevado. Isso se reflete na necessidade de escala e de infraestrutura adequada, especialmente em regiões onde os aterros sanitários não possuem o volume necessário de resíduos para justificar o investimento. Se fosse uma solução de baixo custo, já teríamos um número muito maior de iniciativas desse tipo no Brasil.

Outro ponto é a falta de incentivos econômicos robustos que poderiam acelerar essa expansão. Existem regulações ambientais, como as normas do estado de São Paulo para o licenciamento de unidades de recuperação de energia, mas elas precisam ser acompanhadas por políticas fiscais e de financiamento que estimulem os investimentos nesse setor. Além disso, o marco regulatório do setor de resíduos sólidos, como previsto pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), ainda enfrenta desafios na sua implementação efetiva em muitos municípios, o que também retarda o avanço dessas tecnologias.

Portanto, além da viabilidade econômica, é necessário fortalecer o arcabouço legal com incentivos específicos e parcerias público-privadas para viabilizar a instalação dessas unidades de geração de energia. Isso exige, sobretudo, uma visão integrada que não só elimine lixões, mas que também promova a valorização energética como parte de uma política nacional de resíduos sólidos mais abrangente e sustentável.