ESPECIAL ÁGUA

A crise hídrica já passou?

22/03/2017

O Brasil, maior potência hídrica do mundo, com 12% das reservas de água doce do planeta e que detém em seu subsolo dois dos maiores aquíferos do mundo, está longe da chamada “zona de conforto”. O país, de dimensões continentais e realidades distintas nas cinco regiões geográficas, precisa resolver com urgência os graves problemas de distribuição e degradação ambiental para garantir atendimento à demanda futura. Uma das possibilidades que começa a se mostrar, nesse sentido, é a infraestrutura verde, que reforça a conservação das florestas, dos rios, das nascentes e do manejo do solo, como forma de valorizar os serviços naturais de disponibilidade hídrica – aspectos que também devem ser observados sob o ponto de vista da Lei Nacional das Águas, que está completando 20 anos. Para discutir essas questões, a The Nature Conservancy (TNC) reuniu, em São Paulo, o presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Vicente Andreu, o coordenador da Rede de Recursos Hídricos da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Percy Soares Neto, e o gerente nacional de Água da TNC, Samuel Barrêto que, sob a coordenação da jornalista Rosana Jatobá, falaram sobre os caminhos para ampliar a segurança hídrica no Brasil.

O site Saneamento Ambiental (www.sambiental.com.br) acompanhou o encontro e publica os principais trechos desse debate.


Percy Soares: Iniciativas são valorosas, mas precisam de escala

Percy Soares Neto, coordenador da Rede de Recursos Hídricos da Confederação Nacional da Indústria, organismo que procura articular os mais de 500 representantes do setor industrial com os colegiados de recursos hídricos, ressaltou como primeiro desejo a vontade que o debate dos 20 anos da Lei das Águas seja mais efetivo que o debate dos primeiros 10 anos, quando as discussões não se traduziram em ações objetivas. A indústria entende que, ao estar dentro dos mais diversos colegiados, incentiva o avanço da PNRH.

Conforme explicou Soares Neto, o protagonismo de gestão de águas no Brasil veio dos Estados (na União, a água era parte da agenda do setor elétrico/DNAE), que começaram a instalar um sistema de gestão um pouco mais democrático entre Governo e sociedade, dando origem aos primeiros comitês de bacias, ao uso múltiplo, descentralizado, o que vai até a aprovação da Lei nº 9433. Em 2000, acontece a criação da ANA – Agência Nacional das Águas e um dos maiores ganhos é que a água sai da política setorial e ganha o status de uso múltiplo, passando a conceder as outorgas para os setores de energia, saneamento e irrigação.

Nessa revisão, Soares Neto afirma que a ANA revitaliza o diálogo federativo, mas mostra a fragilidade de discussão dos comitês de bacias, ressaltando os problemas de eficiência, especialmente nos planos de recursos hídricos com materialização frágil. E iniciativas como infraestrutura verde (com o Programa Produtor de Águas), compra de efluente tratado para reuso de água, além de outras ideias inovadoras, acabam não entrando no plano institucional. Esse é um desafio importante dos 20 anos da Lei das Águas: reconhecer que à margem da institucionalidade da gestão das águas tem muita iniciativa valorosa, inovadora e criativa de grandes empresas, que precisam ganhar escala para entrar na gestão de águas do Brasil.

Para Soares Neto, um dos destaques positivos é que nos últimos 20 anos houve grande avanço em termos de tecnologia da informação: “temos condições de fazer análises e quantificações com muito mais detalhes e melhor qualidade de planejamento, tanto para o setor empresarial para identificar a disponibilidade hídrica de regiões específicas, quanto para o gestor público da água conhecer as limitações de trechos específicos de rios ou de bacias inteiras. Nesse aspecto o Sistema Nacional de Informações de Recursos Hídricos editado pela ANA é um bom exemplo de ferramenta, com suas informações precisas. É o momento de avançar a discussão, pois em 20 anos a Lei das Águas mostrou que em situações de crise ainda não consegue dar respostas tão rápidas aos problemas que se mostram”.


Samuel Barreto: Uma das leis mais modernas do mundo

Samuel Barrêto, gerente de Águas da TNC e coordenador da Coalizão Cidade pelas Águas, baseando-se na sua vivência internacional sobre o assunto, destacou que a Lei das Águas brasileira é uma das modernas do mundo, mas que tem grande caminho ainda a percorrer e o desafio será encontrar elementos de convergência. Hoje existem mais de 250 comitês de bacias no Brasil funcionando em graus diferentes de implementação, mas atuando em prol da gestão dos recursos hídricos. A participação social é outra quebra de paradigma da lei, embora ainda com dificuldades de representatividade, mas que trouxe um ambiente interessante de aprendizado e de controle social. Os instrumentos de gestão também foram lembrados pelo especialista da TNC, que os classificou como um dos aparatos mais poderosos no plano de bacias, no enquadramento dos corpos d’água, na licença de uso da água, na organização da cobrança pelo uso do sistema de informação e monitoramento.

Barrêto citou ainda que os prognósticos são desafiadores: “de acordo com a ONU/Unesco, nos próximos 15 anos deverá acontecer uma redução de 40% da oferta de água, seja por degradação dos sistemas aquáticos, por sobreuso, ou pelo desafio conceitual de infraestrutura. Sendo assim, a conservação é um aliado poderoso para promover desenvolvimento econômico e social”.

A TNC lançou um estudo realizado em 4 mil cidades do mundo inteiro, batizado no Brasil de “Além do Manancial – benefícios sociais e econômicos”, que mostra como a conservação ambiental pode auxiliar na parte econômico-social. De acordo com Barrêto, um investimento per capita anual de R$ 6,00 geraria um benefício para 1,4 bilhão de pessoas, sendo possível em pelo menos 25% dessas cidades recuperar integralmente os investimentos realizados em infraestrutura verde. Outro problema citado pelo especialista da TNC é a barreira conceitual dos elementos de conservação na agenda de água e de desenvolvimento – “parece que são questões antagônicas e não há uma preocupação quanto ao desmonte da política ambiental brasileira”.

Barrêto lembrou ainda que em janeiro de 2015 havia apenas 4% de água disponível no Sistema Cantareira e não havia um plano B. Hoje Brasília vive uma situação dramática e isso deve se intensificar com a continuidade de uso do modelo business as usual, ou o modelo romano de buscar água em distâncias cada vez maiores, a elevados custos, gerando conflitos de interesse. “É preciso pensar de forma mais inteligente o balanço entre oferta e demanda, pois já estamos usando mais do que os sistemas têm capacidade de repor. Esse é um cenário que deve se acentuar nos próximos anos e os prognósticos mostram isso”, reforça o gerente da TNC.

A conservação ambiental ou a infraestrutura verde é elemento fundamental na agenda dos recursos hídricos, mas ainda aparece de forma periférica. Uma forma de convencimento são os indicadores de gestão, que precisam ser traduzidos para a sociedade, que em sua maioria desconhece a política da água. É o momento de estabelecer diálogos de relevância e ações concretas entre os diversos setores.

O movimento Coalizão Cidade Pelas Águas, tema estratégico para a TNC no Brasil e no mundo, conta com uma plataforma latino-americana de água, desenvolvida em parceria com outros organismos, que traz uma análise de regiões com mais de 25 milhões de habitantes que enfrentam estresse hídrico e onde as intervenções de infraestrutura verde podem dar maior resultado. Num ranking de 25 regiões, duas delas estão no Brasil e representam 45% do PIB do País. De acordo com o estudo, pelo menos 40% dos mananciais das cidades listadas estão degradadas. Em São Paulo, esse índice sobe para70% e áreas importantes para a produção de água em estado avançado de degradação não têm como cumprir seu papel. A iniciativa pretende recuperar, proteger e conservar essas áreas, estimulando a participação de proprietários rurais, o que tem acontecido sem conflitos. “É preciso entender a importância de proteger essas áreas e mostrar que vale a pena pagar por isso, o que é seis vezes mais barato que buscar água cada vez mais longe ou adicionando insumo químico para tratar e recuperar a degradação. Essa inversão de lógica precisa ser mostrada, assim como o compromisso das empresas privadas de aprimorarem sua gestão sustentável de água e também da sua cadeia produtiva”, defende Barrêto. O caminho é longo e inclui questões como saneamento, uso da água na irrigação – que deve crescer mais de 9 vezes, segundo estimativas do Plano Nacional de Recursos Hídricos, e da geração de energia. Sem a proteção das fontes, esses usos estão comprometidos.


Vicente Andreu: Foco na gestão dos recursos hídricos

Vicente Andreu, presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), ressalta que este é um momento importante para a gestão de recursos hídricos – “na Constituição de 1988 o Brasil fez a correta opção de criar um sistema de recursos hídricos diferente dos demais. Naquela ocasião, o sistema de gerenciamento de recursos hídricos ganhava identidade própria, um caminho correto pela diversidade e pelo tamanho do País, que impedem o tratamento da água de maneira idêntica em todo o território brasileiro. Cada realidade deve ser olhada de acordo com suas diferenças regionais”.

Outra decisão correta do setor, segundo Andreu, foi a criação da ANA e sua vinculação ao Ministério do Meio Ambiente, “embora existam pontos onde é preciso fazer uma distinção entre a racionalidade do uso da água e a lógica do sistema ambiental brasileiro preservação e conservação, mais que de uso da água”. No avanço dos últimos anos a ANA se especializou “e, nesse processo – contínuo, necessário e permanente, o tema da água passou a ser visto muito mais em função dos seus usos do que propriamente por uma concepção geral de preservação. A água é tida como saneamento, como rotor da energia, na agricultura como segurança alimentar e por aí afora”, lamentou Andreu.

Mas em duas regiões brasileiras a água tem papel “popular”: no semiárido, pela escassez; e na região amazônica, pela abundância. Nas grandes cidades não há visão integrada da importância da preservação da água. “A questão do uso é tão forte que fica difícil dialogar sobre a importância da água como questão central. O Brasil tem um plano de expansão da agricultura que não trata da disponibilidade de água. Falta um diálogo sobre a expansão da agricultura irrigada no Brasil”, cita Andreu.

Segundo o presidente da ANA, o setor elétrico é o caminho prioritário para buscar a segurança hídrica, dada a importância que este tem na gestão das grandes bacias. Mas a operação dos reservatórios brasileiros já existentes em nada observa esse fator – “basta  olhar para Jirau, Santo Antônio, Belo Monte e outra série de usinas hidrelétricas e ver que estas seguem um cronograma de segurança hídrica sem observar adequadamente quais são seus impactos do ponto de vista ambiental e da gestão dos recursos hídrico nas bacias onde estão inseridas”, reforçou ele.

Outro diálogo importante que precisa ser retomado é com o setor de saneamento, “que tem uma visão econômica e utilitarista da água. Durante a discussão sobre o Código Florestal, o setor de saneamento e o do agronegócio transpareceram a lógica da infraestrutura a qualquer preço. Sou, inclusive, a favor dessa infraestrutura. Mas existe pouca água reservada dentro do território nacional para uso múltiplo e as crises são de tal dimensão, e mesmo no semiárido, onde os reservatórios foram projetados para suportar seca de sete anos, os níveis estão críticos. Concordo que precisamos de mais infraestrutura, mas defendo que no Nordeste é preciso parar de fazer captação em rios – a maior parte deles de pequeno porte e intermitentes, que acabaram perenizados, e começar a captar dentro dos reservatórios para dar segurança hídrica àquelas localidades. Ou seja, precisamos de mais infraestrutura, desde que não seja apenas isso exclusivamente”.

Segundo Andreu, o Brasil precisa trabalhar com redundância para ter segurança hídrica, mesmo com os impactos econômicos sobre a tarifa e as pressões de natureza ambiental. Antes da crise, São Paulo consumia 72 m³/seg na Região Metropolitana. Durante a crise, esse volume passou a 56 m²/s e agora se estabilizou em 62 m³/s, por diversas razões. “Acredito que o sonho da Sabesp seja trazer o consumo de volta a esse patamar de antes da crise – a transposição da bacia do São Lourenço irá acrescentar à distribuição mais 4 m³/s e a transposição do rio Jaguari irá adicionar mais 5 m³/s. As obras do São Lourenço, projetadas antes da crise, eram para garantir um aumento da demanda e agora passaram a ser classificadas como redundância. Ou seja, um acréscimo de mais 9 m³/s, sendo que a redução do consumo na RMSP deu 10 m³/s. Então, para garantir a segurança hídrica da população, as empresas de saneamento deveriam parar de apostar no aumento do consumo e priorizar a gestão de demanda”, ressaltou ele, defendendo que o equilíbrio econômico-financeiro das empresas deve ser revisto a partir desse novo patamar.

Quanto ao maior desafio a ser enfrentado nos próximos anos está o de elevar o patamar da gestão de água frente à importância dos seus usos. Do ponto de vista de infraestrutura verde, Andreu disse que o Brasil precisa começar a olhar para a operação dos reservatórios das grandes bacias brasileiras, o que pode acrescentar uma segurança hídrica muito maior que a execução de várias obras.